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O Humano na Morte, a Vida na Humanidade

Dentro das atribuições do médico, as que envolvem lidar com a morte são as mais desafiadoras. O áspero não vem do medo da morte, ou da cultura de negação da mesma, vem justamente do humano. Comunicar a morte para pais de jovens, em corredores ou salas de plantões é de dar um nó seco e apertado na garganta. Ao chamar para conversa os familiares do paciente que está na sala de emergência, parece tão óbvio o que você tem a dizer. Mas as palavras vão saindo da tua boca, dentro do tom mais suave, acompanhados pela expressão facial mais contida e firme. Enquanto isso, as expressões daquelas pessoas dizem “Vai fala logo! Ele tá bem, ele vai sobreviver!” Numa ordem aprendida, as palavras seguem “A situação na qual ele chegou aqui foi gravíssima, introduzimos um tubo para que ele respirasse, etc…” mas as expressões ainda são de um otimismo inexplicável… até que “o infelizmente, seu filho faleceu” sai da tua boca e tudo instantaneamente desaba. O tímido sinto muito já é dito sem ser ouvido. O toque no ombro ou o abraço não chegam até onde queriam chegar.

Não foram uma ou duas vezes que deitei a cabeça num travesseiro estranho de um hospital e me questionei  “o que é que eu estou fazendo aqui?”.

Outra situação, bem diferente dessa de um plantão, mas que também é extremamente exigente é quando o paciente é acometido por uma doença terminal, como um câncer metastático.

É quando envolve o paciente que o médico conhece lúcido, quando se estabeleceu um diálogo franco de palavras e gestos, quando se amplia esse contato para a esposa e filhos: é aí que o grande desafio de humanidade se estabelece. Não há treinamento o bastante para situações transcendentes. Não há formulismo para se apoiar. Oferecer o além do máximo digno que a ciência permite, os  chamados cuidados paliativos, o conforto para a alma. As respostas têm que ser sempre sinceras, sem rodeios. “Vale a pena eu fazer essa nova sessão de quimio? Vai mudar alguma coisa?” ou “O oncologista me falou sobre esse exame, mas agora quero saber o que o senhor acha.” As exigências das perguntas crescem à medida em que a relação médico-paciente avança. A decisão está cada vez mais nas mãos do paciente, mas a palavra do seu referencial vai ganhando um peso maior e determinante.

Outro aspecto que inquieta é presenciar seu novo amigo sofrendo.  Na sua cama, a falta de fôlego, a face de dor, o cansaço. Tudo de tratamento ali ofertado, mas dá sempre a sensação de que não há o suficiente.  Quem diz que o médico não pode ou não deve se envolver, não pode sofrer com o paciente, ou não sabe do que fala ou é de outra espécie. Chega uma hora em que a relação estreita-se  ao ponto em que, ao ver o paciente piorar, ao deixar sua casa e entrar no carro, o que se sente é algo estranho, não frustrante, algo como uma angústia, de perda.

Percebe-se que trago um caso específico que me marcou. Entre alguns casos de atendimento de pacientes em situação de terminalidade (quando não há mais cura e a morte é questão de pouco tempo), além de ter sido o mais recente, esse me fez pensar muito e me pediu mais maturidade. Acho que foi porque pude conversar bastante com o paciente e a família. Carrego comigo como uma das coisas boas que a profissão me possibilitou.

Do aprendizado que tive nessa passagem, ficou a necessidade de se fazer presente, de fortalecer ao máximo a pessoa do paciente e, o que pode parecer estranho, abrir espaço para conversas sobre a morte, o que se fez da vida, o que se deixa . O iluminado Dr. David Servan-Schreiber, em seu livro “Podemos Dizer Adeus Mais de Uma Vez”,  deixou algo parecido ao falar sobre como foram seus últimos meses de vida. Ninguém tocava no assunto aparentemente pelo medo de causar um sofrimento ainda maior. Mas David relata que era sobre o que ele mais gostaria de falar, era o que volta e meia dominava seus pensamentos. Ele reconhecia que seria difícil ter esse tipo de conversa com familiares e amigos mais próximos, mas que se alguém um pouco mais distante abrisse essa porta, faria um bem.

Na época em que visitava esse paciente em casa, estava com os pensamentos de Viktor Frankl transitando por diversas regiões do cérebro. Para o psiquiatra, sobrevivente dos campos de concentração nazistas, uma das maneiras de se fortalecer o senso de sentido da vida se dá através dos valores atitudinais. Pela atitude digna perante o sofrimento e a morte, encontra-se sentido para a vida. Em determinado momento do acompanhamento,  após o final da radioterapia – período mais difícil, pela falta de ar intensa  – o paciente mostrava-se desesperançado, entregue, lamuriante. Felizmente, por ter tido a oportunidade de conhecer sua biografia, conhecer seu comportamento marcado pela fortaleza e postura patriarcal, consegui empregar os princípios de Frankl no resgate do porquê viver.  “O senhor sempre foi forte e cuidou muito bem de sua família. Não é agora que precisa ser diferente. Todos se amparam muito no senhor, e vê-lo reclamando está deixando-os desesperados. Eu sei que não é nada fácil. É difícil, muito difícil. Tente manter sua força e jeito que sempre foi. Todos precisam de ti.”

Acho que se passou mais de um mês. Eu já nem tinha tão vívida mais aquela conversa. O paciente já não estava mais restrito à cama. Veio recepcionar-me na sala, orgulhoso de cada passo. Recebi um aperto de mão forte e o agradecimento gestual pela aquela conversa enraizada no pensamento de Frankl. Foi um obrigado por ter me tratado como alguém vivo, como pessoa.  Um obrigado por ter me dado forças para seguir lutando. “Quando eu estava mais pra baixo, esse moço me colocou pra cima.”

Além da vida, no seu enterro, o paciente continuou me ensinando. Seu legado vivo, seus familiares e amigos reunidos, me instigaram a pensar muito na vida: não só na brevidade, no limite, mas nisso do legado que fica no outros.

Um abraço, Leandro

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