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Por que um médico procurou um curso de liderança?

Bom, tenho na tela branca a oportunidade para explicar as razões que me fizeram voltar aos bancos escolares, participar de inusitadas dinâmicas de grupo e até de um outdoor training, dividindo risadas com colegas consultores, administradores e contadores. Sei que essa resposta deveria ter sido dada já nas primeiras aulas, porém, o maior entendimento do tema possibilitou-me compreender a liderança de uma forma ampla e agora percebê-la ainda mais próxima à minha profissão.

A proposta do texto é contextualizar a relação medicina-liderança, aproximando conceitos da administração ao exercício da profissão e justificar a necessidade da melhor compreensão da mesma, no momento em que a medicina passa, a meu ver, por crises no campo da atuação profissional e das suas relações com a sociedade.

Sobre liderança, suas diversas definições convergem para o ambiente e a capacidade de influenciar pessoas para que se alcance determinado resultado. O que é isso senão o exercício cotidiano dos médicos clínicos e a própria relação médico-paciente? Hoje, mesmo com todas as características sociais da hipermodernidade e o avanço tecnológico, é justamente na relação humana e através da capacidade de motivar os pacientes que reside a atuação do médico. Muitas vezes ouvi professores comentarem que medicina é ciência e arte. Hoje, entendo que os aspectos que envolvem a parte tácita, a artística, são aqueles relacionados justamente à liderança.

Isso é tão verdade que cada vez mais, num caminho sem volta, características e competências gerenciais e de liderança do médico são fundamentais para o sucesso profissional e para o alcance dos resultados por seus pacientes. Refiro-me a: empatia, escuta ativa, tomada de decisão, análise de riscos, saber dar feedback, transparência, otimismo, gerenciamento de conflitos, autoconsciência emocional, planejamento, estabelecimento de metas, colaboração com outros profissionais, necessidade de educar os “clientes” – deixo as aspas porque para mim serão sempre pacientes.

Assim como em qualquer caso de liderança, cabe destacar que a postura e a imagem do médico impactam diretamente em sua capacidade de influência e, dessa maneira, nos resultados esperados. Na questão do exemplo, o médico deve colocar em prática o que prega em suas consultas. Praticar exercícios físicos, seguir uma dieta e um estilo de vida equilibrados reforçam, segundo pesquisas, sua capacidade de impactar positivamente os pacientes. Além da questão do exemplo, assim como ocorre em outras profissões, a postura – englobando aspectos éticos e boa educação – tem ganhado grande importância tanto na avaliação por parte dos pacientes e da comunidade quanto no poder de motivação do médico. Pelo que tenho observado, a postura do médico hoje já é o fator determinante na escolha do profissional por parte dos pacientes e familiares.

Partindo para outros campos de atuação com crescente envolvimento da relação médico-liderança, temos o significativo número de profissionais que ocupam cargos gerenciais e diretivos em clínicas, hospitais, operadoras de planos de saúde e instituições públicas. A pesquisa clínica e a educação em saúde também contemplam colegas em posições de gestão. Muitos, apesar de décadas de atuação e grande capacidade técnica, acabam pegando-se despreparados para esses novos desafios relacionais. Outros, por outro lado, fazem um planejamento de carreira que os leva a dedicarem-se a funções executivas, normalmente bem remuneradas, em operadoras de saúde, redes hospitalares e empresas dos ramos diagnóstico e farmacêutico. Atentas a essa necessidade e desejo de qualificação, diversas instituições oferecem formação em cursos de gestão hospitalar, cooperativismo e há em Porto Alegre um MBA executivo na área de saúde – FGV/Hospital Moinhos de Vento.

É interessante lembrar que desempenhar o papel de liderança nos ambientes mencionados anteriormente (clínicas e hospitais) muitas vezes expõe os envolvidos a dificuldades pela heterogeneidade das equipes, falta de experiência em gestão e liderança por parte dos médicos, limitação de recursos financeiros, alto risco e complexidade das atividades fins e estresse endêmico nos profissionais que lidam com o cuidado. A mudança nas funções profissionais envolvendo médicos também pode ser um desafio a diretorias quando se necessita readequar ou extinguir níveis hierárquicos, isso porque ainda persiste, mesmo nos profissionais não-médicos, o paradigma que a atuação do médico baseia-se na verticalidade nas relações. Os problemas seriam agravados, então, pela modelagem comportamental nas relações de trabalho provocada por uma profissão muitas vezes solitária e carregada de poder de um lado e do outro uma grande carga de preconceito vinda de outras categorias profissionais.  O interessante e representativo dessas arestas são justamente os achados de pesquisas que mostram que o tipo de relação entre médico e enfermeiro impacta diretamente no resultado das duas atividades: a qualidade do cuidado do paciente. Sabe-se que treinamentos de liderança nesses casos proporcionam uma melhora no ambiente de trabalho e, logo, melhoram a performance de todos.

Não se trata, de forma alguma, de tentar desconsiderar os traços de personalidade ou diminuir a, muitas vezes vital, atuação do médico. A liderança exercida numa sala de emergência precária, ao se atender um paciente acidentado ou infartado deve sim ser enérgica, direta e com pouco espaço para debates. Tomar para si a decisão de contrariar a ordem de um governador e embarcar um paciente em helicóptero de resgate desativado, como aconteceu no último verão, também é um exemplo de liderança que envolve o médico. O mesmo vale para uma situação, que deve ser rara, de contratempo durante uma cirurgia: há sim espaço para um tipo de liderança específica para aquele momento. O que não se pode, entretanto, é usar desses momentos para justificar o uso constante de uma liderança impositiva em todas as outras situações, como reuniões de equipe, negociações com diretoria e, até mesmo, treinamento de outros médicos.  Liderança, como diz no conceito, é um ambiente e uma capacidade, logo, ao ser membro de uma equipe, mesmo com elevado conhecimento técnico, o médico deve compreender as relações, os tipos de liderança e saber também ser liderado.

Antes, falei sobre modelagem nas relações com outros profissionais. Trata-se de um ponto que há certo tempo vinha me preocupando, afinal, passo o dia todo trabalhando apenas com a secretária – não costumo ver outros colegas. Recebo ordens ou feedback raríssimas vezes. A relação médico-paciente me acrescenta muito conhecimento e sabedoria sem dúvida alguma, porém, não possibilita que desenvolva uma série de habilidades de gestão e liderança que outros contextos me exigirão, quem sabe, em breve. Imagine como ficará esse molde após quinze ou vinte anos de profissão? A tendência é a minha prática moldar até mesmo a minha forma de ser. E, por exemplo, se trabalhasse esse tempo todo num serviço de emergência, que exige rapidez e objetividade: como seria minha postura ao ter que participar de uma trabalhosa negociação, caso fosse promovido a chefe?

Trazendo agora o olhar para dentro da pessoa do médico, as competências de liderança relacionadas à autoconsciência e à autogestão determinam a qualidade e a sustentabilidade de sua prática laboral. Isso mesmo: sustentabilidade! Longe de qualquer modismo ecológico, trago esse conceito porque atualmente, ao desgaste natural do cuidado, somam-se sentimentos constantes de sobrecarga, desvalorização e impotência para gerar mudanças. É preciso prestar grande atenção a esse cenário duro, valorizando sempre a necessária inteligência emocional e o autocuidado. As consequências de não se considerar esses aspectos refletem em aumento do risco para o erro, piora na relação médico-paciente e na com outros profissionais e, o não raro, adoecimento.

Quanto à satisfação profissional, se olharmos para de onde copiamos o modelo de saúde privada, os Estados Unidos, de lá vem uma preocupante estatística. Nos levantamentos anuais do Medscape, há um indicativo de insatisfação crescente com a profissão. No do ano passado, 46 % dos médicos trocariam imediatamente de profissão caso pudessem manter seus rendimentos. A realidade por aqui talvez não seja tão diferente. Pesquisas mostram que até mesmo médicos residentes já apresentam alta carga de estresse e insatisfação laboral.

Continuando, só que agora com outra perspectiva, a interface entre liderança na medicina costuma extrapolar as paredes do consultório e de hospitais. Desde tempos antigos, médicos, ou seus antecessores curandeiros e pajés, eram próximos dos chefes das tribos, dos reinos e dos impérios. Pela formação acadêmica e o trabalho voltados para a compreensão do ser humano e pela natural exposição a condições sociais diversas, amplificados através do contato com grande número de pessoas, o médico costumou transcender sua influência para além do tratamento e prevenção de doenças.

Não é raro vermos colegas ocupando diversos cargos políticos representativos. Hoje, o prefeito de São Leopoldo – cidade onde se localiza a UNISINOS – é o Dr. Moacir Aníbal, ginecologista. Na última eleição para o governo do Estado de São Paulo, o Dr. Geraldo Alckmin, anestesista venceu seu colega o Dr. Alexandre Padilha, infectologista.  A presidente do Chile, Dra. Michelle Bachelet, é cirurgiã pediátrica e epidemiologista, enquanto seu colega uruguaio Dr. Tabaré Vázquez é oncologista.

A atual “bancada do jaleco” no Congresso chega a 49 deputados e 7 senadores – números que são maiores do que o total de muitos partidos conhecidos.

Mesmo quando não ocupa cargo eletivo, o desenvolvimento histórico da nossa sociedade impôs ao médico, querendo ou não, um papel de destaque social, fazendo com que suas opiniões, posicionamento e atitude ecoassem. É atrelado ao imaginário de “doutor”, além do domínio técnico e postura íntegra, um alto grau de conhecimentos gerais, de entendimento das dinâmicas sociais, de comunicabilidade e até mesmo de capacidade para orientação da comunidade.

Perceba nas frases que se seguem:

        “Os problemas de nosso povo são gigantescos. Para enfrentá-los, precisamos de médicos de espírito gigante, armados com todas as conquistas da ciência, e, ao mesmo tempo, conhecedores profundos de nossa realidade socioeconômica. O médico tem hoje um lugar definido na luta pela emancipação social e econômica de nosso povo. Seu lugar é ao lado dos operários, dos camponeses, dos estudantes, dos profissionais liberais, dos industrialistas, dos intelectuais, dos comerciantes, de todos que lutam por um Brasil livre do subdesenvolvimento e da exploração.”

Elas foram ditas pelo jovem Dr. Moacyr Scliar, em 1962, em seu discurso de formatura e repetidas por mim em 2007. O contexto era outro, porém a profissão ainda é a mesma. Sei que muito do peso desse ideal construído sobre a figura do “doutor” tem sido tirado das costas dos médicos, porém, ele ainda é muito forte no senso comum. Com a maior instrução da população pode ser que esse peso diminua ainda mais, dependerá de como se darão os processos de transformação na liderança da classe médica.

É importante destacar, até mesmo para reforçar a necessidade de uma mudança, que o exercício dessa liderança social pelos médicos vem sendo alvo de críticas até muitas vezes justas.  Como mencionei, as crises enfrentadas pela classe demandam uma liderança(*) fortalecida para combater os fatores que levam aos sentimentos de sobrecarga e desvalorização. O risco que se corre, no entanto, com condutas acríticas é o de piorar a imagem da profissão perante a sociedade e a perda de tempo ao não se fazer diagnósticos corretos dos verdadeiros problemas – baixa remuneração (pública e privada), falta de plano de carreira (pública e privada) e baixa participação da classe nas políticas de saúde. (* – qualquer dúvida: revisitar o conceito, uma vez que liderança é diferente de representantes)

É importante trazer exemplos que envolvem a profissão (ou futuros profissionais) como a gravíssima questão dos trotes e homofobia em faculdades de São Paulo, as comunidades médicas em redes sociais defendendo a xenofobia contra nordestinos, os escândalos das próteses, os médicos que abertamente pediram votos e fizeram campanha para candidato durante consultas no último pleito e a contrariedade explícita a programas sociais que diminuem a miséria, a desnutrição e a mortalidade infantil  – vou ser direto: falo do Bolsa Família. Nada disso se aproxima das palavras do Dr. Scliar, apenas apequenam a capacidade de influência social que caracteriza a profissão. Tirando qualquer questão partidária, o que importante nessa questão é o fato de tudo isso ser profundamente simbólico e duradouro. Portanto, a sociedade exige, dos doutores, uma comunicação clara de contrariedade de toda uma classe a essas situações específicas. E, provavelmente, exige também a definição de rumos e um outro grau de negociação por parte dos médicos.

Dentro desse mesmo enfoque, no campo da saúde pública, a lamúria constante frente ao SUS e às operadoras de saúde – que dura já mais de 20 anos –, e o adoecimento acelerado da população (a crescente obesidade, por exemplo) colocam a capacidade de liderança dos médicos como classe à prova. Por que esses fracassos vem acontecendo há tanto tempo? O discurso, que soa muitas vezes como de vitimizados, conseguirá mudar o cenário nos próximos anos?

Duas alternativas se apresentam aos médicos individual e coletivamente: aceitação e mudança na liderança exercida ou simplesmente  um tipo de “renúncia oficial” de seu poder/papel social histórico. Acredito que, infelizmente, no curto prazo, nenhum desses dois caminhos será seguido e a situação tende a manter-se como está, porém, penso que a maioria dos médicos gostaria de usufruir de seu status histórico em prol da melhoria da sociedade. A maioria gostaria do status, principalmente do poder de transformar a vida das pessoas que a ela recorre. Acredito que sim.

Sobre  essa esfera de liderança social dos médicos, com certeza, ela necessita ser analisada profundamente em prol da saúde da população – área que diretamente os médicos podem auxiliar a população – e da própria classe, possibilitando que se vençam desafios como a desvalorização financeira, por exemplo. Não há outra saída.

Encerro deixando um tom de entusiasmo porque, em países desenvolvidos, a discussão sobre medicina e liderança já é avançada. É natural que, em breve, esses bons ventos por aqui soprem. Descobri, ao pesquisar sobre o assunto, até mesmo cursos de pós-graduação focados no tema, como o oferecido pela Faculty of Medical Leadership and Management, de Londres. No Reino Unido há, inclusive, um programa de capacitação voltado a médicos desenvolvido pelo NHS – o equivalente ao SUS do Reino Unido. O interessante é que esse programa começa já nas faculdades.

Apesar de ter me formado há pouco tempo e em curso ranqueado como segundo melhor do país naquele ano (pelo ENADE), o currículo não continha sequer menção sobre liderança. Aprendia-se sobre o assunto apenas por acaso, através da observação do que os médicos residentes ou professores faziam. Um estudo da UERJ publicado no final do ano passado reforça essa carência, mesmo sendo reconhecida a liderança como fundamental à prática médica: “permanece uma marcante lacuna em relação à sua abordagem dentro do currículo médico brasileiro.”

O tema liderança não é apenas interessante ou uma complementariedade para o médico de hoje. Ele é, sim, fundamental para seu sucesso profissional e qualidade de sua prática, nos resultados com os pacientes e nas relações.

Como tentei mostrar, nosso cotidiano é, e continuará sendo, envolvido e direcionado pela liderança.

 

Um grande abraço,  Leandro Minozzo.

Mestre em Educação e, a partir de hoje, com Pós-MBA em Liderança pela UNISINOS.

 

Links:

Shruti Garg , Jon van Niekerk , Margaret Campbell. Medical leadership: competencies in action. Advances in Psychiatric Treatment May 2011, 17 (3) 162170. http://apt.rcpsych.org/content/17/3/162

Faculty of Medical Leadership and Management (Londres): https://www.fmlm.ac.uk

Provenzano BC, Ferreira DAV, Machado APG, Aranha RN. Liderança na educação médica. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto. 2014;13(4):26-31

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