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Afinal, qual a relação entre direitos humanos e violência?

Inicio essa breve crônica com outras duas perguntas:

Fomentar políticas de direitos humanos aumenta a violência? E os direitos humanos servem apenas para a proteção de bandidos?

Em primeiro lugar, não há qualquer pesquisa apontando que implementar políticas públicas baseadas em direitos humanos aumente ou perpetue a violência. Até porque não há lógica em tentar buscar essa associação. O que temos é exatamente o contrário: quando se garante acesso aos direitos humanos é que se consegue reduzir violência e melhorar a segurança.

Aliás, será que as pessoas sabem o que são os direitos humanos? Quais são os assuntos a eles relacionados? E quem deles se beneficia?

É engraçado porque às vezes escuto e leio pessoas que criticam esses direitos e, ao mesmo tempo, defendem tanto a Constituição – um dos símbolos maiores da nossa Pátria. Mal sabem que nela há um forte sistema de proteção justamento dos direitos humanos. O artigo 5º da Constituição, por exemplo, é longo e dedicado justamente a eles. Pode-se lembrar que a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do documento e objetivo maior do Estado Brasileiro.

A história dos direitos humanos está ligada à evolução social e individual ao longo dos séculos. Há componentes filosóficos e religiosos muito claros nessa trajetória. Isso: religiosos. As garantias dos direitos humanos guardam forte relação com o cristianismo e influência da igreja Católica. Deixo, no final do texto, até uma matéria do Vaticano celebrando o assunto.

Mas olhando muito antes pra história, para cinco séculos antes de Cristo, temos documentos e a adoção, em diversas partes do mundo, de uma regra social embrionária dos direitos humanos: a regra de ouro. Não fazer ao próximo o que não queres que façam a ti ajudou civilizações a saírem da barbárie, fundamentando nossa foram de viver em sociedade. Ela está presente nos dogmas das grandes religiões e hoje nos parece natural.

Continuando rapidamente sobre a relação de direitos humanos e história,  acho pertinente esse argumento, grandes movimentos sociais “transformacionais” foram marcados pelo desejo e pela promessa de maior acesso de parte da população aos direitos humanos. Seus documentos, declarações e os discursos de seus líderes são repletos de direitos relacionados à dignidade da pessoa humana e colocam limites e deveres na relação estado-cidadão. Temos as revoluções americana e francesa no século 18, assim como posso falar da revolução russa e também na revolução farroupilha – isso mesmo.  Ou você acha que os pobres e os negros daqui lutaram ao lado dos fazendeiros com qual objetivo? Melhor qualidade de vida, e no caso dos escravos, a um dos mais simbólicos dos direitos ditos humanos: a liberdade.

Em 1948, há 70 anos, foi publicada a Declaração dos Direitos Humanos da ONU (DUDH) que temos como referência ética para um mundo mais democrático, com mais liberdade (positiva e negativa) e com melhores relações sociais. A liberdade de expressão, de imprensa, o direito ao voto, a igualdade racial e de gênero e a proteção da família constituem o conjunto de garantias à vida digna e plena elencadas no documento. Fazer justiça e entregar esses direitos a todos cidadãos têm sido os desafios de todos os países membros.

Destaco que está lá na Declaração, inclusive, que segurança é também um dos direitos humanos. Ou seja, é mais um argumento que vai de encontro com as críticas de que a implementação ou o discurso em prol dos direitos humanos é o que piora a segurança pública.  (Artigo III Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.)

Sugiro que se dê uma rápida lida nos principais artigos da declaração. Também estão lá a importância da família, liberdade religiosa e política, a necessidade do acesso à educação emancipatória, à saúde, à comida, à propriedade privada e ao trabalho. É documento simbólico de combate à escravidão e à tortura.

 

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Isso de dizer que direitos humanos é história para “defender bandido” não fica, então, parecendo uma das grandes mentiras que acabam sendo repetidas mil vezes e ganham ares de verdade? Acredito que sim. É uma tática antiga de manipulação de massas e criação de “inimigos”. No caso dessa relação com a violência, pode haver, quem sabe, intenção de esconder ou deturpar quem realmente é prejudicial à sociedade: a falta de justiça social.

Um segundo aspecto importante é que em qualquer política inteligente de prevenção da violência, a tônica não consegue ser outra a não ser aumentar os direitos humanos de crianças e adolescentes. Mais educação, escola integral, ensino profissionalizante; mais saúde, acesso a tratamento psicoterapêutico, prevenção de gravidez precoce; uma casa; comida; cultura – tudo isso tem a ver com justamente os mal interpretados direitos humanos.

 

 

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Não tem, podem procurar de verdade, não tem como fazer prevenção de violência sem garantir justamente os direitos esses fundamentais aos jovens – e também aos adultos, por que não?

Mas, do jeito que percebo o clima tenso de discussões, acho que um simples jogo de argumentos de lado, dados e contra-argumentos de outro nesse momento não ajuda nada. Em 2018, no Brasil, não basta mais apenas ter razão. O tempo nos pede esforço.

Se não pararmos para escutar e tentar compreender o outro, só pioraremos. Sei que essa atitude exige um pouco mais de paciência, de atenção e de tentativa de compreensão. Empatia, análise de discurso e assertividade, não são capacidades que pessoas (de qualquer ideologia)ostentam por aí, até pelo contrário, estão em falta.

Identifiquei alguns dos principais motivos pelos quais os “direitos humanos” passaram a ser questionados e até culpados no Brasil. Culpados pelo crime, pelo aumento da violência. São hipóteses serão desenvolvidas bem superficialmente, porque o exercício de olhar o outro é o xis da questão aqui. Tenho outras hipóteses vinculadas à essência do neoliberalismo, mas deixo para outro texto.

Aí vai o que consegui pensar sobre as razões da tentativa de desconstrução ou de ódio aos direitos humanos:

  • Questões envolvendo os militares, a ditadura militar e a comissão da verdade

Muitas pessoas associam o período da ditadura, quando houve supressão de direitos, com uma fase boa da sua vida, ou que tinham uma sensação de segurança maior. Hoje, percebe-se que as pessoas que questionam os direitos humanos costumam ser as mesmas que defendem a volta da ditadura ou de uma intervenção militar federal. É o que chamamos de retrotopia. O medo do presente e a incerteza de um futuro fazem as pessoas desejarem o passado, por pior que seja, justamente por saber o que se tem pela frente.  Também acho que nos últimos anos, com as comissões da verdade, recrudesceu de certa maneira esse atrito. Não vejo nos militares no geral, no entanto, como sendo institucionalmente contra os direitos humanos. Inclusive o Exército faz esse tipo de treinamento aos soldados que participam justamente das missões de Paz, da ONU, da entidade da Declaração dos Direitos Humanos de 1948.

 

  • A questão dos adolescentes infratores e a sensação que não são punidos como deveriam

Esse é um assunto que, sim, precisa ser analisado com mais calma.  Há quem diga que o ECA promove e estimula a violência dos jovens, ou a acoberta. Pegando casos pontuais, como o do  Champinha, por exemplo, pode-se alegar esse aspecto. No entanto, no próprio ECA estão dispositivos que envolvem infratores e “criminosos” que não são cumprido. São acompanhamentos, avaliações psicológicas que não saíram muitas vezes do papel.  Por outro lado, temos uma lei fundamental que protege e muito crianças vulneráveis, que são abandonadas, violentadas de muitas formas. O grande porém e o motivo maior de indignação de parcela significativa da sociedade são os adolescentes com 15 ou 16 anos que apresentam conduta extremamente violenta. Mesmo representando 1% dos homicídios, a repercussão se dá de uma forma que confunde o debate. Aliás, acho sim que temos pontos para debater e esclarecer. Pode haver espaço para, até mesmo, melhorar leis ou fazer com que as atuais sejam cumpridas.

 

  • O fato de ser predominantemente uma pauta progressista

Direitos humanos são uma pauta majoritariamente progressista. Bandeiras como o direito das mulheres, o feminismo, as condições das crianças pobres, questões de gênero e LGBT, os negros, os índios, os sem-terra, sem-teto e posso colocar aí até mesmo o meio ambiente são causas mais associadas ao campo de esquerda e centro-esquerda e por ter essa identificação acabam sendo colocados no mesmo grupo – grupo daquilo que se deve ser contra. Então, pela maior exposição de ideias e a polarização em radicalismos, os direitos humanos viraram alvos da guerra ideológica e semiótica presente no país.

  • Serve para defender bandido

Na análise histórica dos direitos humanos, que representam e asseguram a nossa evolução social, vemos que a liberdade individual fica sim limitada nos casos de crime. Em nenhum momento da leitura se depreende qualquer incentivo à impunidade. O que está lá é a necessidade de um processo penal justo – o que fica difícil de não se achar correto e necessário.

Nesse mesma linha, há, sim, muitos defensores das garantias de direitos humanos dos presos e presas – de não serem espancados, assassinados na prisão, que tenham alimentação e acesso à saúde.  E o que vemos nos presídios? Será que temos uma situação que transparece que os nossos presos estão esbanjando direitos humanos nesse cenário de caos? Acho que não. E entrando na “cachaça” do discurso reacionário, se direitos humanos estão servindo para defender e evitar que os bandidos sejam presos ou cumpram penas, como explicar o crescimento da população carcerária? Como explicar as condições das cadeias? Como explicar tanta tuberculose e miséria? Ou justificar que grande parte dos detentos nem ao menos foi julgado?

Não fecha a lógica disso.

Nesse aspecto, lembro do trabalho que o Dr. Drauzio Varela fazia no Carandiru: ele garantia aos presos um dos direitos humanos básicos, a saúde. E, no discurso frequente, quando ouvimos que preso deveria trabalhar (e leis para isso não faltam), o que se está querendo, mesmo sem saber, é que ele tenha mais um direito humano efetivado, o de poder trabalhar.

Nessa questão dos presos, sugiro ler e pesquisar sobre opiniões do Papa Francisco. Ou, para os não católicos, que olhem para taxas de reincidências em presos que têm garantidos seus direitos humanos nos presídios – te adianto, elas despencam.

É importante essa parada para verificação de fatos para compreendermos os assuntos aos quais somos bombardeados e que serão ventilados ou usados como motivação para as disputas pelas políticas públicas.

Você acha  que limitando a condição de dignidade a apenas alguns dos presos  teremos ganho social? Não.  O modelo atual e o que essa “cultura de ser contra os direitos humanos” prega produzirá o retorno de uma pessoa ainda pior à sociedade, e ponto. Mais nada.  Jogar um criminoso em celas sujas e superlotadas e matá-los,  com preferência pela cor e condição social não tem surtido efeito algum, só aumentado o número de presos e a violência.

Dessa forma, fica claro que os direitos humanos não dão liberdade para que ninguém cometa crimes ou seja imune ao rigor da lei. E eles servem para todos nós, em diversos aspectos da nossa vida, e será através deles que conseguiremos mudar a situação que temos hoje. E isso envolve justiça e ação pública.

Ao olharmos para as leis que representam importantes conquistas dos cidadãos brasileiros, muitas delas guardam profunda relação com os direitos humanos. O Estatuto do Idoso, por exemplo, o direito das mulheres ao voto, o SUS, a licença maternidade, o descanso remunerado e o direito à aposentadoria. Isso mesmo… tudo tem a ver com os direitos humanos.

Então, consegue compreender que não há relação entre os direitos humanos como fomentadores da violência?

Outro aspecto importante de lembrar é que os direitos humanos opõem-se frontalmente à escravidão! E, por análises da formação da nossa sociedade, lembrar disso se faz necessário. Mesmo sendo de difícil aceitação e percepção por muitos, temos ainda uma forte marca social relacionada ao longo período de escravidão em nosso país, no lado de quem sofre e no lado de quem a perpetuou. Igualdade no Brasil é um papo que, diferente de outros países ou do que deveria ser na minha opinião, enfrenta severa resistência e ela se manifesta pelo discurso.

Mas, como apontei antes, consegue-se, com um pouquinho de paciência, compreender que o assunto direitos humanos seja realmente um alvo no discurso de pessoas ditas conservadoras ou que se assumem reacionárias. São pessoas que estão com medo e estão indignadas. Muitas delas preferem ou acham que as soluções para problemas sociais complexos podem ser simples. Pode ser, devido à falha brutal na educação que damos aos secundaristas e aos universitários do Brasil, que não tiveram ainda essa percepção do que sejam realmente os direitos humanos. No entanto, não vejo que suas conclusões estejam embasadas em informações claras e, nesse texto rápido,  tentei apresentar uma outra leitura, ou um começo de conversa.

Por fim, qual a relação entre direitos humanos e violência?    Quanto menos direitos humanos, mais violência. Quanto mais violência, menos direito humanos.

É um ciclo vicioso. 

Se quisermos viver num país menos violento, teremos que quebrar esse ciclo, fazendo mais justiça social e entregando mais direitos humanos.

 

Um abraço,

Leandro Minozzo

 

Leituras extras:

Papa Francisco fala sobre importância dos direitos humanos (janeiro de 2018)

http://www.vaticannews.va/en/pope/news/2018-01/pope-to-diplomatic-corps–uphold-human-rights–defend-family.html

 

Declaração Universal dos Direitos Humanos

https://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10133.htm

 

Entrevista sobre o ECA

https://www.cartacapital.com.br/sociedade/eca-nao-produziu-todos-os-efeitos-desejados-avalia-um-dos-criadores-5902.html

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