No debate político amplo, ou seja, aquele não mais limitado à classe política nem às eleições, os conceitos e a pessoa Paulo Freire têm sido evocados pela direita e pela esquerda. O próprio educador, apesar de significante biografia, produção e reconhecimento internacional não escapa dos métodos rasos e virulentos amplamente empregados na discussão de “senso comum”, em especial nas redes sociais, nos últimos três, quatro anos. Hoje, parece que a desconsideração de personalidades e suas ideias é extrema. Constatamos muitas vezes é a clara tentativa de aniquilação de mitos e de formas de pensar que se encontram em situação de oposição.
Importante destacar que Freire é o Patrono da Educação Brasileira. Conquistou 29 títulos de Doutor Honoris Causa e foi reconhecido com o Prêmio Educação para a Paz, pela UNESCO (1986).
Em sua obra, a análise e teorização da relação “oprimido x opressor” é estruturante. Por ser um tema de humanidade, ele permanece atual e tem sido tomado como referência em alguns fenômenos recentes, principalmente, nos quais emerge com mais clareza os conflitos de classe. Em debates que envolvem adesão a determinados movimentos sociais, posturas ou discursos; na análise do papel das mídias na política; e na constatação de casos nos quais o oprimido passa a agir tal qual seu opressor são momentos de retomada da relação oprimido-opressor.
Deixo uma breve e simples resenha do livro “Pedagogia do Oprimido”, com propósito de ajudar a desmistifica-lo e a apontar, finalmente, a importância do diálogo na construção de um ambiente educativo, plural e democrático. Afinal, para qual lugar iremos caso desses últimos quatro anos não consigamos construir uma educação e relação social amadurecida? Ou uma nova forma de compreensão da política?
Freire defendia o diálogo, não só na esfera educativa, mas como próprio e necessário das relações humanas. O diálogo forma o ser humano e sustenta a democracia.
Resenha:
“Em Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire deixa clara sua visão de mundo, educação e liderança revolucionárias. Logo na introdução, Freire trabalha os conceitos de liberdade e conscientização, expõe o medo oriundo da possibilidade de mudança e pontua a relação oprimido-opressor. De maneira interessante, essa relação, embora baseada nos excluídos pobres e camponeses, recai também sobre a classe média, que pode ser considerada oprimida em suas perspectivas de fascínio pelo opressor.
(…)
A opressão e todos seus enlaces habitam a mente da maioria, senão de todos os participantes dessa ordem mundial. As idéias de Freire defendem a humanização do homem “isto”, cada vez mais objeto numérico passível e pacífico.
Percebe-se tal fato já no primeiro capítulo, quando o autor justifica sua obra, situa a relação opressor-oprimido e a necessidade de sua superação. Freire refere à desumanização como distorção da vocação do homem, que é o “SER MAIS”. Critica as falsas caridade e generosidade, apontando-as como perpetuadoras da condição vigente. A cultura é outro elemento de destaque na obra, pois Freire a aponta como local de mudança para que se consiga pelo menos tentar quebrar a relação de opressão. O paradigma do oprimido foi prescrito pelo opressor e apenas empoderar falsamente o primeiro não o libertará da prescrição antiga. É preciso uma nova consciência. Nesse ponto, de análise e necessidade de mudança cultural, o autor traz muito bem a questão do fatalismo que acompanha os oprimidos, indicando que a imagem de si precisa ser mudada.
No segundo capítulo, Freire conceitua a educação bancária, a educação problematizadora e o ser mais. Traz para o campo educativo toda análise da relação opressor-oprimido. Por educação bancária, define aquela na qual o professor deposita o conhecimento no pote vazio – que é a cabeça do aluno. O veículo desse tipo de prática é a verbosidade puramente impositiva, “palavra oca”, alienada e alienante. A educação problematizadora preza pelo diálogo permanente e horizontal. Nesse momento, Freire reflete também sobre a relação homem e mundo, deixando sólida a necessidade de que essa relação seja explorada e incorporada na prática educativa.
No capítulo seguinte, o autor reforça a necessidade do diálogo como essencial na pedagogia. O diálogo como forma de investigação, como forma didática. Diz: “O diálogo é uma exigência existencial.” É por meio dele, que se tenta desvendar o universo temático do aluno. No último capítulo, Freire fala da práxis (reflexão + ação).
Achei “Pedagogia do Oprimido” uma leitura oportuna e instigante. Ela possibilita fazer muitas relações e seus conceitos e perspectivas revolucionárias são necessários. Infelizmente, a fumaça cibernética e o tufão que nos move chamado “rapidez das coisas” podem tornar esses conceitos humanistas de Freire um tanto quanto ultrapassados. Creio que a pós-modernidade gere nos pensadores (e não-pensadores) uma necessidade imensa de criar novas teorias, de buscar perguntas e respostas que se encaixem a tudo isso, à essa velocidade. Nessa busca, idéias e grandes pensadores acabam sendo esquecidos e tripudiados. É óbvio que precisamos urgentemente de novas teorias e esse tufão e essa conectividade estão deixando nós, educadores, para trás e os alunos, hiperativos ou apolitizados.
Freire representa muito mais do que a alfabetização ou um método de fazê-la. Freire mudou o seu mundo. Ele escreveu sobre a necessidade do amor às pessoas como essencial no diálogo educativo. Ele trouxe (diretamente) a política para a educação. Nada mais atual que isso.” (Canoas, 2010)
Tive esse contato com os escritos de Paulo Freire no mestrado em educação. Era jovem e o cenário social do país era muito diferente. Vejo que hoje teria feito essa leitura de uma forma mais vinculada à política, um pouco mais incisiva na questão de classes, de direitos e no campo de análise de discursos do cotidiano. Sobre o lugar de Freire enquanto alvo de críticas, engana-se, porém, que seja algo recente. Há muito o educador é questionado, rotulado de antigo/ultrapassado ou mesmo desconsiderado. Na época, poucos professores da pós-graduação defendiam sua obra ou aceitavam para si o rótulo de “freireanos”. Dois fatores podiam contribuir para esse afastamento de uma obra nacional que aproximava tanto a política da educação: a tentadora sedução pelo novo e, o que acho ainda mais determinante, a percepção de que tínhamos uma “possibilidade” de esquecer da relação da educação com a luta de classes. Vivíamos, e isso pode em parte justificar, um tempo no qual os trabalhadores adquiriam melhores condições de vida e de trabalho. Havia uma sensação de esperança que iludia e cegava a academia. Como em diversos campos do saber, intelectuais brasileiros distanciaram-se da nossa própria realidade de uma país colonizado e marcado pela desigualdade.
Acredito que, como quase toda a sociedade, os críticos de Paulo Freire esquecem, e esqueciam, do sempre presente conflito, que hoje emergiu rompendo as amarras, nas ameaças das reformas na previdenciária e trabalhista, na PEC 55 e na terceirização irrestrita da mão de obra. Conflito que se manifesta pelas formas de comunicação, pelas tentativas de desconstrução e pelo ódio crescente.
Em tempos nos quais há excesso de informações e um rebaixamento da visão crítica, a pedagogia crítica pode ser resgatada como alternativa para construção de um lugar melhorado em relação ao que temos hoje. Um lugar mais humano.
“O meu discurso em favor do sonho, da utopia, da liberdade, da democracia é o discurso de quem recusa a acomodação e não deixa morrer em si o gosto de ser gente, que o fatalismo deteriora.” (Paulo Freire)
Abraços, Leandro Minozzo